O chá traz a ‘borracheira’, conjunto de sensações físicas e psíquicasque gera uma experiência catártica"-O que é que estou fazendo aqui?"
A pergunta é inevitável para aqueles iniciantesque sentem no corpo o início do processo de assimilação do chá sagrado nos rituais. Aos poucos,como o movimento lento das marés, uma “força” vem chegando. Bocejos, aumento da temperatura corporal ou um frio intenso, suspiros que parecem querer capturar todo ar em volta. Mantas e cobertores são bem-vindos. Ela vem chegando.Vinte minutos após a ingestão do chá, começam as reações. Algumas pessoas conservam os chicletes nas bocas, para amenizar a aspereza do chá. A respiração profunda antecipa a purgação. O mestre executa as chamadas de abertura – espécies de cânticos cuja função é chamar a força na sessão da União do Vegetal e controlar a borracheira (força estranha), chamando ou despedindo diferentes energias. Concentrar-se nas chamadas é considerado importante – mesmo com o fluxo permanente de pensamentos e “as voltas” que parecem ocorrer no abdômen.E a pergunta volta a ser feita: - O que estou fazendo aqui? “Me perguntei isso também a primeira vez que vim. Vomitei muito e foi incontrolável, nem pude levantar de onde estava”, recorda a jornalista Fernanda Carvalho, que atualmente integra o Corpo Instrutivo no Centro Espírita Jacinto Luz Taboa, presidida por mestre Nonato. O centro é uma dissidência da UDV, mas que mantém quatro graus hierárquicos: quadro de mestres, corpo do conselho, corpo instrutivo e quadro de sócios.À primeira vista, as reações são indesejáveis. Mas dentro do ritual, o vômito, por exemplo, possui três motivos: maneirar a borracheira, provocar uma limpeza orgânica, por uma incompatibilidade do chá com a alimentação, ou para limpeza de energias negativas. Mas nem sempre o vômito é a reação corpórea para a limpeza da alma: o choro também é comum.Os efeitos, no entanto, são considerados para os não-adeptos como prova do efeito tóxico do chá. De forma paradoxal, esse mesmo efeito para quem comunga da sacralidade do chá é considerado como uma desintoxicação. Crê-se que a experiência catártica provoque uma limpeza dramática do organismo, varrendo sentimentos, lembranças, pensamentos e vivência espirituais.
O etnocentrismo porém não é tendência apreciada pela aposentada Maria Agusta da Silveira, 75 anos, que há dez bebe o vegetal. “Gosto de prestar atenção aos ensinamentos de mestre Nonato. Teve amor. Falou de Jesus e paz, estou. Encaro o chá como um remédio”, declarou após a sessão extra da qual participou.
O papel do mestreMestre Nonato recebeu a estrela que o designa apto a comandar as sessões da União do Vegetal do fundador da religião: o baiano mestre Gabriel. Nascido em Coração de Maria, em 1922, José Gabriel da Costa teve uma vivência espiritual intensa, em busca da realidade. Ele vai desenvolver a União do Vegetal, nos próximos anos de sua vida, quando junta-se aos 55 mil nordestinos que migraram para os seringais amazônicos em 1943.
Atualmente em Salvador e região metropolitana são cinco unidades administrativas da religião e 11 em todo o estado.
Onde mestre Gabriel nasceu também foi fundando um núcleo e o cajueiro que acompanhou a infância do mestre é respeitado pelos adeptos que encaram como “honra” visitar o local onde ele cresceu. A religião congrega atualmente profissionais de diversos segmentos – jornalistas, advogados, médicos, terapeutas, funcionários públicos, aposentados.
Um dos cinco mestres do núcleo de Coração de Maria, Henrique Hudson Barbosa, 40 anos, destaca a importância da família comungar o chá. A sessão é encarada pelo mestre como também uma terapia de casal. “Para mim, o chá é uma coisa boa. Quando o casal bebe vegetal junto, fica com sintonia afinada, o dia-a-dia fica mais fácil, a convivência e o relacionamento melhoram. A luz na consciência mostra as coisas claras”.
O papel do mestre na sessão é conduzi-la percebendo o momento de intervir com a chamada certa para os direcionamentos nos rituais, além de responder as perguntas feitas pelos presentes. Durante a borracheira são colocadas ainda músicas, instrumentais, de Roberto Carlos a forrós. “Todas as músicas trazem mensagens nas letras”, explica o terapeuta Carlos Leandro, que conduziu a sessão extra nos Dias das Mães e entre as músicas executadas naquele dia pôs Nossa Senhora.
O desconforto causado na borracheira é chamado peia – como uma cobrança da consciência por atos, sentimentos ou atitudes consideradas incorretas. “Quando não se faz algo correto, o enjôo, o vômito é o que chamamos de peia”, explica Mário. Quem vai pela primeira vez reconhece os ensinamentos cristãos, mas a surpresa é convite à introspecção.“Coisa é viver, outra coisa é viver feliz e em harmonia, e aqui você aprende isso rápido. Para mim, é a única religião que faz você se conhecer. Não é ninguém falando para você. É você e você. O vegetal por ele mesmo faz a pessoa saber de seus medos. É um contato com certos sentimentos que não encaramos de frente”, afirmou o produtor de vídeo Érick Delauro, 30 anos, levado por um terapeuta ao centro e naquela sessão um dos poucos a repetir o vegetal, até antes das 22h, segundo o ritual difundido por mestre Gabriel.A borracheira que aponta os medos apresenta também soluções. Colocar em prática os ensinamentos parece ser a peça-chave para alcançar a plenitude. Aos poucos, a inquietação, o levantar-se para ir ao banheiro, dá lugar a uma sensação de plenitude. Como se uma onda forte tivesse passado e retornamos à bonança. Trazemos no barco da memória a rede cheia de expectativas, novas respostas e conhecimentos.Ação das substânciasHá ainda muito a se investigar sobre a atuação no chá no sistema nervoso, mas já se sabe que entre seus princípios ativos está a DMT, potente psicoativo encontrada na chacrona, e algumas substâncias do grupo das betacarbolinas, encontradas no cipó. Ingerida isoladamente, por via oral, a DMT não teria chances de chegar ao cérebro, pois suas moléculas são quebradas pela enzima monoamina-oxidase (MAO), presente em diversos tecidos humanos. Mas as betacarbolinas do cipó inibem a ação da MAO, ocupando-se das enzimas e permitindo que por algumas horas, a DMT possa agir depois de chegar ao cérebro.
“As substâncias presentes no cipó inibem uma enzima de nosso corpo que degrada a DMT. Logo, com a enzima inibida, a DMT pode atuar no sistema nervoso. Existem sim efeitos cerebrais com o uso regular, como o aumento das proteínas transportadoras de serotonina”, explicou Rafael.
A dimetiltriptamina (DMT), princípio ativo da chacrona, é semelhante à serotonina - um dos neurotransmissores presentes no cérebro que tem a função de “ligar” um neurônio ao outro, transmitindo impulsos eletroquímicos. Esta similaridade causaria a maior parte dos efeitos do chá sobre o sistema nervoso central, já que ambas, a DMT e a serotonina, fazem ligações entre os neurônios, produzindo pensamentos, visões e sensações.
Em 2006, o uso ritual da ayahuasca foi reconhecido nos EUA, no estado no Novo México, onde funciona uma filial da União do Vegetal. Com base na exceção concedida ao peiote pela Igreja Nativa Norte-Americana, desde 1993, os juízes consideraram que não houve abuso ou uso descontrolado do sacramento nativo. Segundo o veredicto unânime, o grupo religioso está protegido pelo ‘Religious Freedom Restoration Act’ – peça jurídica fundamental no processo que legalizou o uso ritual do cacto peiote, cujo princípio ativo é a mescalina.
Nas duas principais seitas ayahuasqueiras, os ensinamentos foram transmitidos por dois nordestinos, que fundaram um novo campo religioso. A primeira destas religiões é o Santo Daime e foi criada por Raimundo Irineu Serra, o mestre Irineu, no início da década de 30, na periferia de Rio Branco, no Acre.
Mestre Irineu deixou o Maranhão em 1912 para trabalhar nos seringais e teve contato com a bebida que batizou Daime – expressão rogativa feito à rainha da floresta, que representa Nossa Senhora da Conceição - “Dai-me força”, “dai-me luz”, “dai-me amor”.
Em 1945, surgiu a Barquinha, também em Rio Branco, criada por Daniel Pereira de Mattos, o mestre Daniel. Nestas duas linhas, o chá recebe o nome de Daime, ocorre doutrinação de espíritos, assim como bailados, para alcançar o transe. Em 1961, nasceu a terceira linha dessa tradição religiosa, chamada União do Vegetal (UDV).
É uma dissidência desta linha que a jornalista Fernanda Carvalho freqüenta. Durante a sessão extra de Dia das Mães, Fernanda chorou. Ela contou que durante a borracheira – período de cerca de quatro horas no qual a força se manifesta –, sentiu a dor daqueles que não tem mãe. “E pensei de que forma poderia ajudá-los. Indo em um orfanato, levando meu filho, passando uma tarde com elas”.