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segunda-feira, 22 de agosto de 2016

pequenas epifanias de Caio F. de Abreu

 "Dois ou três almoços, uns silêncios.
Fragmentos disso que chamamos de “minha vida”.

Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —
enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos,
também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.
Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não
querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não
aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não
aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos,
com aquele mesmo descuido, de “minha vida”. Outros fragmentos, daquela “outra vida”. De
repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água,
entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que
nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.
Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia
protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos se armavam de outro
jeito, fazendo sentido. Nada de mau me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro
do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me
reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah
você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando
esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.
Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair
daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você,
no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no
quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector — “Tentação” — na
cabeça estonteada de encanto: “Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza
aprisionada. Ela, com sua infância impossível.” Cito de memória, não sei se correto. Fala no
encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também
ruivo, que passa acorrentado. Ele para. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o
puxa. Ele se vai. E nada acontece.
De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos,
acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que
velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem
solitária do não pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado,
também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito joias
encravadas no dia a dia.
Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca
vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida
vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer
coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à
noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que
ninguém veria.
Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e
com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma
possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de
dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face.
Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro
de sentir fome."


Esse é um texto do Caio. E eu voltei nele pq nele tenho vontade de nunca mais sair das letras, só através delas me faço entender, e encontro a compreensão.

Obrigada Caio, por ter sido tão maravilhosamente completo.

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